Há pelo menos quatro décadas, a gordura saturada é considerada uma vilã da alimentação, teoricamente responsável pelo aumento do risco cardiovascular. De fato, guias alimentares do mundo todo recomendam limitar ao máximo seu consumo. Mas, nos últimos anos, essa recomendação tem sido colocada em xeque por diversos pesquisadores. Afinal, a gordura saturada é maléfica ou não?
Pergunte para sua avó que tipo de gordura ela usava para cozinhar nas décadas de 50 e 60 e ela te dirá: banha de porco. Pergunte o que ela passava no pão e ela te dirá: manteiga. Nessa época, ninguém se preocupava se estava consumindo muita ou pouca gordura saturada. Aliás, esse já era o padrão nas muitas décadas anteriores, época, aliás, em que emagrecer era preocupação de poucos.
Eis que na década de 70 tudo mudou. A banha de porco foi substituída por óleos vegetais. A manteiga foi substituída por margarina. Leites e iogurtes integrais passaram a ser substituídos por suas versões low-fat. Consumir gordura saturada passou a ser altamente "demonizado". Guias alimentares agora diziam: não consumam gordura saturada ou reduzam seu consumo ao mínimo. Mas o que levou a este quadro?
O principal estudo de referência foi um estudo de coorte, ou melhor, de 16 coortes em sete países. Em 1970, Ancel Keys publicou o “The Seven Countries Study” (ou o estudo de sete países), onde ele concluiu haver tendência de correlação entre a incidência de doença coronariana e as concentrações sanguíneas de colesterol e tendência de correlação entre as concentrações de colesterol e a proporção de calorias consumidas na forma de gordura saturada. Então no início da década de 80, órgãos oficiais americanos passaram a recomendar o consumo de até 30% do valor energético total da dieta em gordura total e 10% em gordura saturada. Uma vez que a gordura saturada é encontrada primariamente em alimentos de origem animal, como carnes gordurosas, leite e derivados integrais, e alguns alimentos de origem vegetal (como coco, por exemplo), a recomendação foi a de restringir o consumo desses alimentos. E o mundo seguiu a mesma recomendação. E assim permanece até hoje. Simples assim. Há quem especule sobre o papel da indústria de óleos vegetais nisso, mas eu prefiro me abster dessa teoria da conspiração neste momento e me valer das evidências científicas. Vamos a elas.
O primeiro grande problema das recomendações da época é que elas se basearam em estudos epidemiológicos, os quais não permitem estabelecer relação de causa-e-efeito. Ou seja, não é possível a partir deste tipo de dado, dizer que o consumo da gordura saturada leva ao aumento do risco cardiovascular. Neste post anterior, eu falo sobre os inúmeros problemas destes tipos de estudo, particularmente no que se refere à nutrição e alimentação.
Para fazer esse tipo de inferência sobre causa e efeito, são necessários estudos clínicos randomizados e controlados. Apesar da dificuldade de se desenvolver este tipo de estudo na área da nutrição e alimentação, já havia estudos deste tipo publicados na época em que as recomendações foram feitas. Eles simplesmente não foram levados em consideração. Em um artigo (meta-análise) muito interessante, publicado em 2015 por Harcombe e colaboradores, foram levantados seis estudos clínicos randomizados e controlados disponíveis na época. Dentre estes estudos, quatro examinaram o efeito da substituição de gordura saturada por óleos vegetais, um examinou o efeito da dieta com baixo teor de gordura e um o efeito de uma dieta com 10% do valor energético total em gordura saturada. Curiosamente, este último reportou maior quantidade de mortes por doenças cardiovasculares no grupo experimental. Considerando os seis estudos (com amostra total de 2467 homens), a mortalidade por doenças cardiovasculares foi de 16,8% nos grupos experimentais (que diminuíram o consumo de gordura saturada) e 17,4% nos grupos controle. Estes dados mostram não ter havido qualquer relação entre a alteração do consumo de gordura saturada e mortalidade por doenças cardiovasculares. Houve, contudo, diminuição nos níveis de colesterol total nos grupos experimentais, porém isso não impactou no risco cardiovascular. Falaremos sobre isso adiante.
Logo, em 1970 havia evidências de estudos randomizados e controlados que não suportavam aquelas recomendações. Mais curioso ainda é olharmos para o tal estudo de referência, o estudo de Keys. Neste estudo, a associação entre o consumo de gordura saturada e doenças cardiovasculares era muitíssimo fraca. Além disso, os dados mostravam enorme diferença nas taxas de mortalidade entre países com consumo similar de gordura saturada. Por exemplo, a mortalidade em uma ilha grega era 17 vezes maior do que em Creta, apesar do consumo de gordura saturada nas duas ilhas ser similar. Além disso, muitos alimentos ultraprocessados e ricos em açúcar , por exemplo, foram considerados como alimentos ricos em gordura saturada (mais um problema dos métodos de avaliação do consumo alimentar).
Aliás, um estudo se propôs a avaliar a quantidade de gordura saturada nas células de tecido adiposo dos indivíduos – que reflete o consumo de gordura saturada nos meses anteriores, eliminando a limitação da avaliação do consumo alimentar – em pacientes infartados e controles saudáveis (estudos caso-controle). Os autores relataram que pacientes infartados tinham a mesma quantidade de gordura saturada no seu tecido adiposo do que os controles saudáveis. Ou seja, pacientes infartados e saudáveis consumiam a mesma quantidade de gordura saturada, pelo menos nos meses anteriores ao estudo, enfatizando a ausência de associação entre este consumo e eventos cardiovasculares.
Voltando ao estudo de Harcombe e colaboradores, eles observaram diminuição nos níveis de colesterol total nos grupos que diminuíram o consumo de gordura saturada, porém isso não impactou no risco cardiovascular. De fato, este e outros diversos estudos mostram que substituir gordura saturada por gorduras poli-insaturadas (provenientes primariamente de alimentos de origem vegetal) leva à redução das concentrações de colesterol total e do LDL (o famoso “colesterol ruim”), o que poderia levar à redução do risco cardiovascular. Talvez esteja aí uma explicação mais coerente para a “demonização” da gordura saturada. Contudo, além do consumo de gordura saturada levar ao aumento modesto de LDL, este decorre do aumento de um subtipo de LDL (grande) que não é aterogênico, ou seja, não aumenta o risco de doenças cardiovasculares. O problema é que os exames clínicos de rotina não medem os diferentes subtipos de LDL, uma vez que isso é muito custoso. Além disso, o consumo de gordura saturada também leva ao aumento de HDL (o “colesterol bom”). Talvez seja por isso que a literatura sobre esse tipo de substituição seja tão inconclusiva, ou seja, embora alguns estudos demonstrem que a substituição de gordura saturada por poli-insaturada está associada ao menor risco de doenças cardiovasculares, outros tantos (em mesmo número) não mostram nenhuma associação.
Para colocar ainda “mais lenha na fogueira”, estudos recentes, também epidemiológicos, encontraram correlação negativa (e não positiva!) entre consumo de derivados do leite integrais e risco cardiovascular – ou seja, consumir leite e derivados integrais parece estar associado ao menor risco cardiovascular.
Devemos entender que ao reduzir o consumo de alimentos ricos em gordura saturada, aumentamos automaticamente o consumo de outros alimentos ricos em outros nutrientes. Muitos outros nutrientes, que podem impactar de diferentes formas a saúde cardiovascular. Talvez isso explique por que é tão difícil estabelecer uma relação direta entre UM único nutriente e um desfecho qualquer. A gordura saturada não parece ser vilã, tampouco heroína. Isso vale para qualquer nutriente, não só para a gordura saturada.
Logo, a divinização ou a demonização de um nutriente, seja ele qual for, não faz sentido algum. O exemplo da gordura saturada é apenas um deles. Nós, profissionais da saúde, temos que entender de uma vez por todas, que uma alimentação saudável, é aquela mais natural possível (ou seja, com poucos ultraprocessados e processados), variada, equilibrada e prazerosa para mantermos saudáveis nossos corpos e mentes.
Até a próxima.
Fabiana Benatti - www.cienciainforma.com.br
Para saber mais:
Astrup A, Dyerberg J, Elwood P, et al. The role of reducing intakes of saturated fat in the prevention of cardiovascular disease: where does the evidence stand in 2010? Am J Clin Nutr. 2011;93(4):684-688.
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Chowdhury, R., Warnakula, S., Kunutsor, S., Crowe, F., Ward, H.A., Johnson, L., Franco, O.H., Butterworth, A.S., Forouhi, N.G., Thompson, S.G., Khaw, K.T., Mozaffarian, D., Danesh, J., and Di Angelantonio, E. (2014). Association of dietary, circulating, and supplement fatty acids with coronary risk: A systematic review and meta-analysis. Ann Intern Med. 160: 398-406. Keys A. Coronary heart disease in seven countries. Circulation. 1970;41(Suppl 1):1-211.
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Harcombe Z, Baker JS, Davies B. Evidence from prospective cohort studies does not support current dietary fat guidelines: a systematic review and meta-analysis. Br J Sports Med. 2016 Oct 3. pii: bjsports-2016-096550.
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