Semana passada, fomos todos pegos de surpresa por notícias sobre Anderson Silva sendo pego em exames anti-doping. Como de costume, a mídia parecia mais preocupada em emitir opiniões e “julgar” o caso, do que em informar de fato. Em meio a informações desencontradas, (ex-)fãs revoltados e defensores do politicamente correto, apresento aqui um esforço para analisar o caso frente ao conhecimento científico. O post será mais longo do que o usual, mas um tema tão especial como este não poderia ser tratado com menos cautela.
Informações desencontradas
Algumas notícias deram conta que os testes de Anderson Silva acusavam a presença de dois hormônios esteroides anabólicos androgênicos: drostanolona e androsterona. Ao que parece, o atleta foi testado em 3 ocasiões: nos dias 9 e 19 de janeiro foram colhidas amostras de sangue e no dia 31 de janeiro foi colhida amostra de urina. As substâncias proibidas foram encontradas apenas na amostra de sangue colhida em 9 de janeiro. No entanto, outras fontes afirmam que a amostra de urina (e não de sangue) continha metabólitos de drostanolona (em vez da própria substância). É que o se vê, por exemplo, no suposto resultado oficial emitido pelo laboratório responsável pelas análises (veja aqui a imagem publicada em um site norte-americano). Nesta imagem, vê-se que o tipo de amostra analisada foi urina e que as substâncias encontradas foram:
- 17-methyl-5b-androstane-3,17-diol (provável metabólito da 17-methyltestosterone)
- Metabólito de drostanolone (não há referência sobre qual metabólito)
O resultado do teste não faz alusão à substância androsterona, um esteroide natural, exceto quando relata sua concentração da urina (1800 ng/ml - valores típicos são próximos a 1000 ng/ml), assim como faz para outros indicadores de seu perfil de hormônios andrógenos naturais. Aliás, nada fora do normal.
Antes de analisar o caso, vale a pena esclarecer alguns pontos básicos sobre o uso de esteroides.
O que são esteroides anabólicos androgênicos?
Como o próprio nome sugere, são hormônios que levam a dois efeitos no organismo: efeito anabólico e efeito androgênico. O efeito anabólico refere-se ao crescimento de tecidos. Nos músculos, esse crescimento leva ao ganho de massa muscular e, por consequência, de força. É o efeito anabólico que atletas e frequentadores de academias almejam quando fazem uso de esteroides. Já os androgênicos referem-se aos seus efeitos masculinizantes: engrossamento da voz, calvície, crescimento de pelos e etc. Tidos como efeitos colaterais, os efeitos androgênicos são indesejados pelos usuários.
O organismo humano é capaz de produzir esses hormônios, sendo a testosterona o principal esteroide natural. Em homens, a produção de testosterona é obviamente maior do que em mulheres.
Uso e abuso de esteroides anabólicos androgênicos
Devido a seus potentes efeitos sobre o ganho de massa muscular e força, existem muitas preparações de esteroides, as quais visam o tratamento de doenças em que a perda de massa muscular e força são críticas. O uso clínico de esteroides também se estende ao tratamento de deficiências na produção de testosterona (hipogonadismo masculino), e também ao tratamento de certos tipos de câncer (em especial, o câncer de mama).
Mas o uso de esteroides entre atletas e entusiastas é certamente o mais conhecido (e polêmico...). O aumento de seus músculos e de sua força pode lhes ajudar (e muito!) a competir melhor, especialmente em esportes em que ter força faz diferença, como é o caso das lutas. Claro, quanto maior a dose utilizada, maiores são esses efeitos e, por isso, muitos usam doses muito altas, chegando a mais do que 100 vezes a dose fisiológica! É o que os médicos chamam de abuso de esteroides.
As duas principais maneiras de usar esteroides são por injeção intramuscular e por via oral. As preparações para injeção são normalmente a base de óleo, e costumam causar bastante dor no local da aplicação. A “vida” do esteroide injetado é longa, podendo circular por 1 a 4 semanas no sangue após sua injeção. Por esse motivo, a “janela de oportunidade” para detecção em exame anti-doping é maior quando o esteroide é injetado. Por outro lado, as preparações orais são metabolizadas de forma mais rápida, sendo que a “vida” após sua ingestão não costuma ser maior do que 2 dias. Assim, a “janela de oportunidade” para detecção no anti-doping é mais restrita.
O que é o 17-methyl-5b-androstane-3,17-diol, encontrado na urina de Anderson Silva?
Quando ingeridos via oral, os esteroides passam pelo fígado antes de chegaram à circulação, onde são inativados. Para evitar essa inativação, as preparações via oral geralmente envolvem a adição de grupos químicos ao esteroide (grupo metil ao 17º carbono, na maioria das vezes). Por isso, o nome de muitos anabolizantes de via oral começa com 17-methyl. A propósito, a substância que aparece no suposto exame de Anderson Silva é um metabólito de algum 17-methy-esteroide (provavelmente 17-methyltestosterone – veja aqui). Posso afirmar isso porque todos os 17-methyl esteroides mantêm esse grupo metil quando são metabolizados (referências aqui e aqui). Na urina, o que se vê são seus 17-methyl metabólitos, e não os 17-methyl esteroides ingeridos. Portanto, é seguro dizer que a presença de 17-methyl-5b-androstane-3,17-diol na urina é decorrente da metabolização de um 17-methyl esteroide ingerido por via oral. Essa substância não poderia ter aparecido na urina por outra maneira.
O que é a drostanolona?
Trata-se de um esteroide sintético, não produzido em nosso organismo. Pode ser encontrado tanto em preparação oral como injetável. Portanto, não há como saber se a presença de seus metabólitos na urina foi decorrente da ingestão oral ou da infusão de drostanolona. Muito utilizada no tratamento de câncer de mama, essa droga é bastante anabólica, normalmente utilizada em combinação com outros esteroides por atletas. Seus dois metabólitos que chegam à urina são 2-alpha-Methyl-5-alpha-androstan-3alpha-17-beta-diol e 3-alpha-hydroxy-2-alpha-Methyl-5alpha-androstan-17-one (veja aqui). Não se sabe qual dos metabólicos foi encontrado na urina de Anderson Silva, mas é provável que seja o último, já que esse é o principal metabólito da drostanolona.
É possível que essas substâncias tenham chegado “por acidente” ao corpo de Anderson Silva?
Sim, essa possibilidade existe, já que tanto a 17-methyltestosterone (provável origem da 17-methyl-5b-androstane-3,17-diol na urina) como a drostanolona podem ser ingeridas por via oral. Caso tivessem sido encontrados metabólitos de esteroides exclusivamente injetáveis, seria mais difícil justificar “injeção” acidental.
A ingestão acidental de esteroides pode ocorrer pelo consumo de qualquer coisa (suplementos no topo da lista dos suspeitos!) contendo quantidades, ainda que mínimas, dessas substâncias. Estudos mostram que o consumo de suplementos contaminados com quantidades ínfimas de esteroides (tão pequenas que nem de longe melhoram desempenho) podem levar o atleta a ser testado como positivo (veja aqui). Esse é caso de Anderson Silva? Impossível saber! Mas qualquer julgamento sobre o assunto sem a devida instrução seria irresponsável e leviano.
Ingerir “por acidente” não exime os atletas de suas culpas
O código anti-doping é muito claro quando diz que os atletas são responsáveis pelas substâncias presentes em suas amostras. Embora casos anteriores de atletas brasileiros pegos no anti-doping tenham resultado em penas brandas sob a alegação de consumo de suplementos contaminados, essa justificativa não é aceita por agências internacionais anti-doping.
Drogas anti-inflamatórias: uma defesa para Anderson Silva?
Alguns noticiários afirmam que a defesa de Anderson Silva será baseada no uso de drogas anti-inflamatórias. Não está claro quais drogam ele teria tomado, mas posso supor que sejam anti-inflamatórios não esteroidais, como o ibuprofeno e o diclofenaco. Essas drogas têm algo em comum com esteroides anabólicos androgênicos: todas são metabolizadas pelo mesmo grupo de enzimas. Portanto, seu uso poderia afetar a metabolização dos esteroides, possivelmente alterando resultados anti-doping (veja aqui). No entanto, estudos em humanos não confirmaram essa hipótese, mostrando claramente que, mesmo em doses altas, os anti-inflamatórios não seriam capazes de alterar resultados anti-doping. Cabe ainda ressaltar que a alteração ocorreria na taxa T/E (testosterona/epitestosterona), e não no aparecimento de metabólitos que, em situações normais, não deveriam estar na urina. Portanto, acho improvável que alegações dessa natureza sejam aceitas.
Devemos condenar Anderson Silva?
Independentemente de ter feito uso ou não de esteroides, devemos, antes de julgar a moralidade de Anderson Silva, fazer algumas considerações. No esporte de altíssimo nível, a maioria esmagadora de atletas faz ou já fez uso de uma ou mais substâncias proibidas com o intuito de melhorar o desempenho. Que diga Lance Armstrong.... Por quê? Pelo simples fato de que não usar implica uma desvantagem enorme frente àquela maioria de adversários que usam. A verdade, por mais que muitos neguem, é que usar doping significa competir em igualdade de condições. E por que os atletas negam? Por ser proibido, e pelo estigma que se impõe aos que admitem ou que são pegos usando. E por que somente a minoria (menos do que 2%) dos atletas testados é pega? Porque os testes são muito falhos. Conhecendo o comportamento da droga no corpo, é relativamente fácil ajustar seu uso para, no dia da competição, o atletas estarem “limpos”. Teste fora de competição tendem a “positivar” mais do que os testes em competição. Ainda, drogas novas são “desenhadas” exclusivamente para serem utilizadas por atletas sem que sejam pegos no anti-doping.
Portanto, condenar Anderson Silva por usar esteroides significa condenar a estrutura que sustenta o esporte de alto nível, incluindo os mega-espetáculos e a cultura do “winner takes all” (apenas o vencedor ganha tudo: fama, dinheiro, contratos e etc.). Os atletas são, provavelmente, apenas o elo mais frágil dessa corrente. Ao Anderson Silva, como seu fã, desejo apenas sorte em sua recuperação.
Um abraço, e até a próxima!
Guilherme Artioli - Blog Ciência Informa